Tomara que ele não venha hoje. Tomara que ele não venha hoje. Calma. Ela não estava querendo evitar um carinha mala qualquer. O problema não era o cara. Aliás, ele era ótimo. Inteligente, carinhoso e de riso fácil. O problema era que, além de estar numa baladinha que odiava, ela estava com uma cólica terrível. Sabia que não seria a melhor companhia aquela noite. Deixou de beber porque achou que pioraria a dor. Quase não falou, mas sorria ao ouvir as histórias de seus amigos. Foi uma boa ouvinte. Mas, cedo ou tarde, ele chegou. Merda! E apesar de todo o esforço dela para ser simpática e querida, ele percebeu que tinha algo errado...- O que você tem, hein? Tá meio quieta, distante...
Ela não tinha o porquê mentir. O problema não era ele. Era puramente fisiológico.
- Desculpe, é que eu estou com uma cólica gigantesca. A dor tá insuportável...
- Você está bebendo?
- Não, achei que poderia piorar, sei lá...
- Hum, você devia ter bebido algo...
Ela não soube dizer se ele estava falando sério ou se era brincadeira. Ele insistiu.
- É sério! Não é a melhor solução, mas já que não temos analgésicos... O álcool ajuda a anestesiar a musculatura lisa que é...
- Ah, que ótimo! Eu sofrendo enquanto uma cervejinha ou uma dose cavalar de vodca aliviaria toda a minha dor? Por que você não me disse isso antes?
- Como eu iria saber? Você também não perguntou!
- Ah, tá...
Ele riu e foram os dois em direção ao bar. Ela sorriu de volta ao lembrar que ele era farmacêutico. É claro que ele sabe o que está falando. Não havia razão para não seguir aquela recomendação. Isso aconteceu há 10 anos quando ela era jovenzinha o suficiente, mas foi um belo conselho. Atualmente, eles já não têm mais contato direto, mas ele ficou marcado. Não como o cara que estava tentando embebedá-la para, com sorte, levá-la pra cama. Mas sim como o 'cara que pagou um drinque simplesmente para livrá-la de uma cólica'. Quer atenção maior que essa? Por sorte, ele resolveu aparecer aquela noite...
Cama de casal só pra mim? Pode ser interessante, ela pensou antes de deitar. Pegou o travesseiro dele e abraçou junto ao corpo. Ainda era possível sentir o cheirinho de maracujá. Fechou os olhos e já sentiu a falta. Dele. Foi se arrastando de leve para o outro lado da cama como se ele estivesse ali para escorá-la. Mas ele não estava. Só voltaria de viagem dali 3 dias. O lençol estava gelado e ela não parava de se arrastar de um lado para o outro. Não conseguia sossegar e achar uma posição confortável. Precisava que seu espaço fosse delimitado. Precisava sentir o calor do corpo dele. O mínimo contato para conseguir dormir. "Só eu mesmo pra te aguentar!", ele costuma dizer. Mas quando o assunto é dormir realmente ela não é fácil. É pior que criança. Às vezes tem pesadelos e acorda assustada. Sofre de insônia quando está estressada ou ansiosa. Geralmente é vencida pelo próprio cansaço ou pela sessão vigorosa de sexo de quase todo dia...
Hoje o dia foi estranho, mas o estranho - às vezes - até que cai bem. Acordei às 7h para o meu teacher training às 9h. Tenho acordado sem a ajuda do despertador em função da minha ansiedade e medo de perder a hora. Ter responsabilidade funciona que é uma beleza nesse caso. Passo 3 horas observando os outros teachers, gritando e gesticulando feito um bando de condenados. Não tem como escapar. Tem que dar a carinha pra bater. Palhaçada pura. E o mais legal: em outra língua. Mais dinamismo, pessoal. Mais rápido, mais alto. Vocês são os regentes! E funciona assim: Eu falo, você repete. Eu falo, você repete. Eu falo, você repete. Falar e repetir insistentemente por 1 hora. É bem fácil... Cheguei em casa exausta só de imaginar que estou - momentaneamente - disposta a 'gastar' 8 horas ou mais do meu dia assim. Mas por enquanto, vamos apenas focar no treinamento.
É engraçado pensar nas recordações que as pessoas costumam carregar relacionadas à infância. Eu, por exemplo, lembro de ter 8 anos e ficar com medo de não ter alguém em quem eu pudesse me apoiar (não emocionalmente e todos os 'entes' possíveis). Lógico que eu nem sabia o que era isso. O apoiar é no sentido de estar junto. Ou seja, naquela época eu devia estar mais preocupada em ter alguém para simplesmente brincar comigo. E só comigo, se fosse a nossa vontade (pois as crianças também podem ser más e cortar as outras das brincadeiras). Na minha cabeça meio precoce - eu imagino - as coisas funcionavam bem assim: o papai tinha a mamãe. O meu irmão mais velho tinha o irmão mais novo. Na sequência, eu. E depois de mim, vieram as gêmeas. Ou seja, quem ficou sem par na brincadeira da minha família fui eu. Até os cachorros tinham um ao outro. Mas eu, com 8 anos de idade não tinha ninguém. Acho que esse medo permaneceu comigo mesmo que em estado latente e eu acabei me isolando em várias situações ao longo da vida. O pai e a mãe continuam juntos. Os irmãos casaram. Cada um tem sua esposa. E o casal de sobrinhos (tem um ao outro, vejam só). E as irmãs continuam solteiras, mas elas têm uma à outra. E eu? Já quando criança não tinha par. E agora, depois de velha, continuo sem par. Não quero morrer sozinha e desamparada. Será que a nóia de criança cresceu e virou uma puta nóia de adulto? Só pode e eu continuo com medo. Talvez por isso o meu desejo de ser mãe seja enorme. Pelo menos teria alguém pra mim... Faz sentido?
Amanhã completo 77 anos. Há 1 ano fiquei viúvo. Só Deus sabe o quanto eu sinto falta da minha polaca. Não sei como ainda não perdi a noção do tempo, pois os dias depois de uma certa idade parecem todos iguais. Não existe mais novidade, não tenho mais ao meu lado a pessoa que fazia a diferença. Rezo todos os dias para o fim dos meus dias. Já vivi o suficiente, já vi muita coisa, ainda guardo na memória os momentos e pessoas que fizeram a nossa vida valer a pena. Claro que muita coisa já se perdeu aqui dentro, mas a idade e o passar dos anos também passam a ser cruéis com as melhores lembranças...
Seu psicólogo me ligou ontem querendo conversar. Quase tive um infarto ao imaginar que alguma coisa pudesse ter te acontecido, mas ele disse que você está bem. Hoje fui lá e ele me entregou uma carta. Pelo que entendi era um exercício e ele pediu que você a escrevesse justamente com a intenção de me entregar. Não quis ler na frente dele. Enquanto caminhava rumo ao escritório tentava adivinhar o conteúdo daquele envelope. A curiosidade era enorme, mas o medo ainda era maior... Estou no meu cubículo e acabei de lê-la. Não queria responder agora, no calor do momento, mas ao mesmo tempo não quero deixar os pensamentos e as respostas irem embora ou perderem força. Sempre senti um puta orgulho de você e das coisas que você escreve. Você sempre foi tão boa com as palavras, mas estas - carregando suas dúvidas e medos - só ajudaram a me estraçalhar ainda mais por dentro.
Ainda não acredito que você levou embora o laptop (que também é meu). Agora eu preciso escrever minhas matérias, textos, lembranças e o escambau a quatro tudo a mão! O pior tem sido recordar. O choro vem rapidinho e eu desisto das lembranças. Às vezes parece melhor esquecer, mas o psicólogo disse que me ajudaria. Não só a minha recuperação, mas também a entender o que acontece com a gente. Em função do acidente eu acabei quebrando as pernas e você saiu ileso. Não consigo nem lembrar o maldito porquê daquela discussão. Foi apenas um desvio de olhar e pronto. Hoje já faz uma semana desde a minha última cirurgia. Uma semana que eu estou deitada na nossa cama sem poder levantar pra quase nada. A Valéria às vezes me coloca na janela. " É bom pegar um solzinho. Vai levantar o astral da senhora". Engraçado como ela tem razão. O movimento na rua é incessante. O mundo acontece lá fora e eu esqueço de mim. Tenho tanto a observar...
Ele finalmente foi promovido. Além disso, vai poder escolher o país que pretende desbravar e continuar o seu trabalho. Tem como opções a Polônia, os Estados Unidos, o Peru e até os Emirados Árabes... Mas não é com o local que ele está preocupado agora. É com ela. Ela passou meses desempregada e justo agora que estava trabalhando em algo que gostava, ele ia estragar tudo. Pra ela. Ou para os dois. Não tem como não dar merda, ele pensava. Deitado no sofá e bebendo até neutralizar suas dúvidas, ele a esperava.
Era uma sexta-feira a noite e eles não quiseram sair. A semana já tinha sido regada a jantares com amigos, happy hours e eles estavam quebrados. Assistiam a um filme de aventura onde o mapa da mina deve estar localizado no inferno, ela pensava. Já não aguentava mais tanta cretinice. Virou para ele e disse: